ColunistasCOLUNISTAS

Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Caminhando com os pés descalços

20/10/2015 - São Roque - SP

Não tenho a pretensão de caminhar apenas sobre a areia fofa ou sobre o gramado bem cuidado do quintal de casa. Não acho que todos que passaram antes de mim tomarão o cuidado para tirar os cacos de vidro do caminho ou de sinalizar um buraco com potencial de quebrar uma perna no meio da estrada. Perigoso para quem anda descalço e distraído, preocupado tão somente com a descoberta do próximo passo. Preocupado sim em prevenir quem vem logo atrás sobre as armadilhas do percurso.

Caminhar esperando placas de alerta é como acreditar no pra sempre sussurrado depois do sexo. De um eu te amo intercalado com beijos, sob a cobertura de uma noite chuvosa e de corpos despidos, tão unidos a ponto de não se saber onde inicia um e onde termina o outro. Meus pés descalços são a certeza de que o que estará comigo na estrada pertencerá, de fato, apenas a mim. A promessa do amanhã é a falha de não se ter pensado na possível queda do hoje, que pode sim impossibilitar um futuro a dois. Uma casa com filhos. Uma rotina acariciada pela segurança que a estabilidade traz.

No momento em que decidi tirar os sapatos, precisei provar a mim mesma sobre o quanto eu sou capaz de curar feridas ou de simplesmente andar com cortes abertos, a sangrar ininterruptamente, a doer, a amaldiçoar as felpas responsáveis pela mazela. Quando prometi a mim mesma que dispensaria o uso de calçados, estava selando um pacto que carrega consigo a nudez de uma vida sem rodeios. De uma face sem máscara e de palavras saídas diretamente do coração, sem ponte e sem filtro. Sem nuances ou desvios.

Não quero carregar o fardo de precisar prometer ‘para sempres’. De usar a bengala da consideração do outro para sobreviver e sentir-me feliz. O amor funciona por meio de combustível. Ele sofre desgaste e se nega a funcionar se não for cultivado. E não adianta acusá-lo de insuficiência ou de covardia. De mentira ou de fado. O para sempre é uma consequência do dia a dia. Está em um beijo demorado ou em uma carícia inesperada. Está na preocupação sobre a pouca roupa ou sobre a moléstia que aflige. Em cada pergunta sobre como foi o dia, o meu para sempre se situa. Em cada manhã que acordo e que, inevitavelmente, lembro-me sempre da mesma pessoa, está a minha promessa de eternidade.

Ando descalça para prevenir-me dos pesticidas que a sociedade teima em produzir e, contraditoriamente, se defender. Poluem e compram remédios. Derrubam árvores para construir, no lugar, outdoors de incentivo à preservação da natureza. Quero andar na direção contrária, permitindo-me machucar pelas feridas que eu mesma compactuei com a abertura. Sentindo, pois, a dor de uma vida que poderia ter dado certo de uma forma, mas que, por ironia ou por falta de combustível, acabou tomando outro destino.

Com os pés descalços, posso sentir quando o caminho começa a se tornar mais duro e quando os passos passam a destoar. Caminhar com alguém é comprometer-se a dar as mãos e, vez que outra, alterar o próprio ritmo para não deixar o outro caminhar sozinho. O meu pra sempre reside, então, no compromisso de não soltar a mão, a menos que o outro solte. A batalha acirrada entre o ser feliz com alguém e ser livre para viver é o que mutila o entendimento alheio. Não são antagonismos. Podemos ser felizes, livres e acompanhados. Tudo ao mesmo tempo.

Aos poucos, é certo, os pés começam a criar cascas grossas na sola. Transformam-se quase que em armaduras orgânicas, solados de pele impregnada por experiência e por falta de cuidado. Não quero, no entanto, deixar que os meus cheguem a esse ponto. Estou disposta a manter as cicatrizes, mas jamais em descuidar sobre como os passos estão sendo dados. O chão que piso não merece ser pisoteado. A felicidade está no caminho, na construção. Seria, pois, paradoxal arriscar que meu trajeto seja construído por passos duros e sem sensibilidade. Com os pés sujos e descalços, mas sensíveis e receptivos às imprevisibilidades do ocaso, perjuro no para sempre de cada dia a rotina de continuar amando cada manhã que comprova, com o mesmo primeiro pensamento, a eternidade que sinto pelo corte ainda aberto no peito.

 

THIANE ÁVILA.

Compartilhe no Whatsapp