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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Vontade de destoar

26/10/2015 - São Roque - SP

Não sei se é um sentimento compartilhado, mas às vezes tenho vontade de destoar. Ao lembrar das coisas não vividas, parece-me demais carregar toda a tinta acumulada no corpo. É como se eu precisasse, hoje, raspar as cores com que me pintaram. Há tanto que já não me pertence.

Durante a caminhada, desprender-se das posses dos dias é uma dificuldade cumulativa. A cada adeus preciso, uma parte da parede descasca. Um pedaço do reboco desmorona. Dá, então, vontade de retroceder, voltar, viver de novo. A demagogia da volta às boas horas, aos bons sentimentos e ao que foi alimentado por ares que não conspiram mais nada. Não é possível, pois, o regresso. E nem saudável.

O saudosismo de quem revive uma intensidade, mesmo que não compartilhada da forma que se achava ser, não é fraqueza. Fraco é o que não se permite cair e levantar quando novamente revigorado. Os tapas que recebemos, ao serem devolvidos com rosas, fazem do seguimento uma rotina mais amena. Não é engolir a raiva, mas lembrar-se de que só podemos oferecer o que nos transborda e nos faz ser quem somos. Não sou mágoa, pois.

Durante muito tempo, abraçamo-nos às pequenas esperanças. Às pequenas coisas, apenas por acreditar que o pouco, com um pouco de amor e boa vontade, tem potencial para ser muito - ou tudo. Mas a hora agora é outra. O abraço deve aprender a encontrar outros braços. Há tantas existências fulgorosas a confiar o peito, a dedicar o cafuné.

Vou destoar para desencaixotar emoções. Redescobrir novas cócegas nos lábios que tremem pela chegada de um novo alguém. Apaixonando-se, assim, a cada dia, pelas novas possibilidades que o inesperado traz. Eu quero, então, desaprender para aprender de novo. Amar outra vez, da mesma forma e diferente. Sem migalhas ou beijos mornos, mas com a mesma ânsia de aderir a novos sabores. Descobrir novos programas. Preferir novas preferências. Estou sempre disposta a ser um pouco do outro, porque é assim que mantemos nossas diferenças.

Todos os sentidos que perdi até hoje, pretendo reencontrá-los. Novos e mais fortificados, ainda que certamente desprovidos da experiência que gostaria que tivessem adquirido. Quando destoar, suas tintas desgastadas também não resistirão. E eu mesma não quero que resistam.

Sempre acreditei que teorizar um momento que se faz irreversível é perder a beleza dele. Fazê-lo desigual ao que foi, impróprio ao presente. Minha lua em gêmeos me contradiz, mas exercito o hábito de evitar a racionalização que faz perder a falta de sentido. Entender demais é loucura.

Acho triste a tendência do ensino do amor. Constantemente, nas relações, o outro quer ensinar-nos a amar. O amor descomprometido e despretensioso muitas vezes é insuficiente. Precisa-se mais. Só me resta destoar.

Quero amar da forma que me aprouver. Dar de mim não o que me sobra, mas o que me sustenta e transborda. Um amor em cada esquina. Um para sempre a cada noite que se termina e que sela uma eternidade que acaba tão logo o dia amanhece.

É que no momento em que houve dúvida do sentimento, eu continuava aí dentro. Amando e acreditando. Agora, creio eu, não esteja mais na mesma sintonia. Descobri novas estradas. Amei novas carícias que me pareceram mais inteiras. E assim, estou entendendo que preciso destoar periodicamente. Deixar algumas cascas de tintas velhas no caminho. Elas não vão deixar de existir, mas também não vão atuar como um peso que não preciso e não quero mais carregar.

 

THIANE ÁVILA.

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