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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Agora mais um pouco de Elba que recita Amy à moda Mahalia

13/9/2016 - São Roque - SP

Não sei se é normal sentir falta de algumas vidas, ainda que não tenham sido vividas. Ainda que não haja lembrança provável de qualquer aproximação experimental. Ao som do jazz bagunçado e deliberadamente perfeito de Amy, ouço, ao fundo, a improvável voz gospel de Mahalia Jackson, misturada com uma entonação clássica e brasileira de Elba Ramalho. Curiosamente, como os casos desvividos - ou não vividos - da vida, ensandeço com a descoberta das influências. Com as provações que levam a tudo aquilo a que nunca pensamos sequer chegar perto. 

Dentro do meu jk mobiliado com a outra metade da casa que deixei, envergo os olhares às paredes brancas com rasuras de perfeito alinho. Não há marcas, é certo. Mas há marcações, vidas e, quem sabe, mutilações de histórias interrompidas. Soube que já viveu gente depressiva e gente explosiva aqui. Sei que passaram cafetões e feminismos rasgados. Os ares respirados conjugam um quê de curiosidade sobre o que os olhos das janelas já testemunharam. Quantas vidas que poderiam ser minhas. Quantos meus que nunca me pertenceram elas agora olham. A perplexidade está em saber que há, mesmo que não haja mais. 

No blues que toca ao lado, no vizinho exageradamente próximo de mim, compadeço pela intimidade por vezes corrompida. Já viramos extensões normais de rotinas que se cruzam, respeitando a falta de espaço que as janelas praticamente grudadas reverberam. Dois gays a dividir um peso silencioso de viver sublinhando os passos - explicados pela desabotoadeira de intenções logo abaixo. Ela reclama ao som do menor ruído. É boa pessoa, apenas solitária. Eu e ele temos compaixão. 

Nos corredores de prédio antigo, o eco das existências que dividem espaço tão singelo com a minha. Paro para pensar, ao som de Jorge Vercillo interpretado por Villeroy, a insipiência dessas pérolas douradas de que a letra entoa na melodia. Não sei ao certo para onde irão as expectativas criadas em cada porta que se fecha ao mais remoto olhar, mas creio estarem designadas à profanação dos que cozinham e deixam, como que de propósito, o cheiro escapar. Moro sozinha e não deixo escapar sequer um latido, um espirro ou uma gota perdida da chuva que parou, mas que antes molhou as toalhas que esqueci de recolher. São os malditos hábitos desacostumados de quem sempre teve alguém para lembrar de recolhê-las. Volto à Amy. 

No braço esquerdo da cozinha americana, paixão à primeira vista que me fez querer vir pra cá e não para outro lugar, amarro as vestes de uma academia improvisada. Meu chão frio resvala a ansiedade dos lembretes espalhados por todo o canto, das vozes dos meus livros que gritam por mim - calma, meus amores, estou lendo todos ao mesmo tempo, não fiquem enciumados. Assim administro o tempo por entre páginas de Strauss, contratualismo de Rousseau e página perdida de Camões. Sou também o signo, a letra e o significado daquele que não lembro o nome, mas que é o próximo. 

Amanhã, ao nascer do dia que promete ser chuvoso, consultarei novamente minhas notas de rodapé escritas na louça que ainda não lavei. Lástima de quem tem toc a louça ainda na pia. É só um prato, mas minha loucura encherga pilhas e pilhas de sujeira a ser limpa. Levanto e lavo. Pronto, agora mais um pouco de Elba que recita Amy à moda Mahalia. Escutemos. 

 

THIANE ÁVILA.

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