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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Negligência

28/5/2017 - São Roque - SP

Às vezes me dou por conta das negligências de viver. Das desvalias de sentir e das tempestades em dias de sol. Fechando as janelas para os ventos que limpam, caçoando as horas que fazem as significâncias ecoarem pela memória, pelos lares, pelas companhias. Não esbanjamos tempo, mas gastamos os minutos em espera. Não temos tanta saúde, mas brindamos a vida como eterna.

Ainda que o compasso não reflita a realidade do som, permaneço em desvantagem com relação à rebeldia da pressa e da solicitude do fim. Ao anoitecer, vejo as luzes acesas nas janelas das casas e dos prédios, cantando, em silêncio, presenças que, sob alguma perspectiva que desconheço, fazem sentido. As ausências recaem, agora, como presenças densas no apartamento vazio cheirando a incenso.

Viver numa alegoria de autossuficiências é hit da humanidade. O ápice da contemporaneidade que se suporta. Que se abstém. Pelas preocupações vãs da rotina que passa sem que a percebamos por inteiro, vislumbro a dor das efemeridades que já pareceram tão etéreas. Os toques silenciosos de quem ama e não diz. De quem se dispõe, mas não aparece. São as energias enrustidas dos defeitos e das qualidades de sentir e transparecer pelo reflexo da defesa ou da abordagem despreocupada.

Negligência, por assim dizer, aqui entendo como o remorso do abraço não dado, do beijo pouco estalado e das mãos que queriam permanecer por mais alguns instantes unidas. Entrelaçadas. O olhar antigo de minha avó, as reclamações infundadas de minha tia. O cuidado genuíno de minha mãe, as interrupções irritantes de meu pai. A presença rara de meu irmão, com o abraço breve de quem tem pressa de viver.

Meu peito agora vibra pela pequena família biológica, tão cheia de desparâmetros. Tão pouco vista – às vezes tão pouco lembrada. Dói lá no íntimo a emersão da consciência de que o tempo continua passando e as coisas há tanto já mudaram. Os Natais menores, as comemorações já um tanto quanto tristes pelas perdas e ausências. Abraço-me, pois, no meu universo particular que reside no colo de minha mãe e lá pareço transmutar os sentidos na pureza desprotegida de amar cada interstício de um ser.

Às avessas, a conversa com meu pai, o pouco assunto que impera uma relação de poucas palavras, de poucos olhares. Como que para trazer aconchego, meu irmão ressurge de tempos em tempos e acalenta algumas lacunas, traz à tona velhas piadas e voltamos, finalmente, a ser as mesmas crianças desprotegidas de outrora – postas no sereno da vida que, a qualquer momento, vem para liquidar a serenidade dos traços tão parecidos e tão diferentes de duas existências paridas do mesmo universo.

Nesses momentos de mudez sensível e emotiva, é preciso evocar nas palavras qualquer ameaça de limpidez, de graça em compreender a mudança dos ciclos. A sensibilidade de perceber a vida nas diferenças e nas semelhanças reformadas. As aparências mudadas, entoando as mesmas falas com vozes amadurecidas. Com repertórios mais densos e com chantagens mais adultas.

Em minha exclusiva companhia, repenso, olhando para fora do apartamento, na intensidade do amor que sinto pelos desafetos e pelas alegrias das seis pessoas que compõem os raros almoços de domingo dos quais participo. Aqueles dos quais discordo veementemente, mas que estão sempre lá. A avó que ainda resiste ao cabelo curto e às namoradas, mas que sempre vem com trinta e dois tipos de comidas diferentes para que eu passe a semana bem. A tia que reclama dos mais sutis detalhes, mas que sempre traz às pressas o doce depois do almoço e serve o meu prato primeiro. O pai que luta contra os próprios preconceitos, mas que sei que sempre estará com a mão estendida. A mãe que é perfeita, mas que é ainda mais perfeita do que eu julgo que seja. O irmão que é feito uma brisa gostosa, daquelas que eu sei que sempre voltam e, quando menos espero, traz o acalento que preciso para seguir com novo gás os dias que sempre vêm depois do abraço de até logo.

 

THIANE ÁVILA.

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