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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

É madrugada

2/2/2018 - São Roque - SP

É madrugada. Chove pensamento o choro sem lágrimas. Dói escuro e invisível. É sensação que se acomoda nas entranhas, tornando intersticial cada inconstância. Recorrência nobre às estupidezes de sentir, entregando à própria sorte aquilo que transborda e que é capaz de alimentar meio mundo.

As arrogâncias dos sentimentos são equivalentes às presilhas imaginárias dos submundos que criamos. Ilusões temporárias sobre vidas inteiras. Carregamentos de orvalho para enfeitar os prédios da cidade que dorme. Que se agita. Que transa. Que não se conhece. São as metáforas mal escritas das histórias que não se cruzaram ainda, mas que, ironicamente, são sempre primas de segundo grau.

Se pararmos para pensar, as pessoas são tão efêmeras quanto o tempo. Passageiras a ponto de serem esquecidas. São um exagero de importância. Uma necessidade de existir, tornando profundo o que é superficial. Ninguém sabe, de fato, mergulhar em uma história senão na sua. O egoísmo fantasiado de saudade é a justificativa para o perdão. No fundo, o ato é um reflexo, e as projeções nunca estão no outro, mas em nós mesmos.

Por um milésimo de segundo, questiono o desencontro do amor – ou o nome que for. É um exagero de sentir. Uma falha que legitima a imbecilidade de esperar. A escrita realista e grosseira é a minha preferida na madrugada, pois o número de palavras escritas equivale à quantidade de tapas na cara que me dou por transtornar meu próprio potencial em esperanças sem perspectiva. Não adianta mudar de assunto, pois as músicas continuam as mesmas. Ainda sei ler os gestos e o cheiro ainda entra com uma familiaridade desejada.

A madrugada é a progenitora dos cenários. Sem precisar de explicação, realiza, no breu, os mais claros prognósticos, levando, de súbito em súbito, aos resultados sem prescrição. Não lê mapas, mas trilha todos os caminhos. Não conhece ninguém, mas é íntima de todo mundo. Anda de mãos dadas com a solidão em público e em multidão, calculando, sem métrica, as regalias que as possibilidades metalinguisticamente justificadas criam sobre as circunstâncias. Viver é o roteiro. Despedir-se é o fim certeiro e conhecido, mas que se fantasia de eterno apenas para conquistar mais adeptos.

As festas e os bares que nos carregam confirmam o cenário do que existe, mas é unilateral. A madrugada tem sua própria louça nos lugares, preenchidas do líquido que saboriza os olhares em meio ao barulho. Capaz de realinhar o que se perdeu, acionando a memória que as músicas brasileiras trazem à silhueta. Como uma sombra, senta à minha mesa e já é íntima no vagar dos meus gestos. Me lê e questiona. Não mais intimida ou afronta, mas se resguarda nas linhas da minha madrugada – cada vez mais discreta e silenciosa. Creio que nem perceba mais sua presença.

 

THIANE ÁVILA.

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