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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Uma mulher

15/3/2018 - São Roque - SP

Era uma mulher como qualquer outra. Com sonhos como quaisquer outros. Com a perseguição intrínseca da exigência pelo gênero, pela atitude, pela interseccionalidade de valores que não fecham. Que não encaixam. Nos discursos, a voz doce suaviza a aspereza das dores, da pobreza, da crueldade de viver certos momentos. Alguns dias poderiam ser anulados - nada mais justo aos dias que a anularam.

As pessoas ao redor, cegas, não percebiam as lágrimas e confundiam a beleza com a facilidade de tocar as horas com as dificuldades. Nunca cogitou outro lugar senão a rua. Jamais pensou em outro roteiro senão o de mulher. Já entendia que os problemas eram somáticos e que a percepção quase nunca se dava ao trabalho da ambivalência. É que as pessoas, via de regra, não estão dispostas a mudar de lugar. Não há discurso que possa se sobressair ao silêncio de quem privilegia. Ecos ensurdecedores de um reflexo que, de tão longe, machuca. Que, de tão irreal, imerge na realidade de quem não tem escolha.

Cuida o trajeto, a bolsa, as contas e o tamanho da saia. Cuida o horário, a demora, a violência e o silêncio para as barbaridades que ouve. Não há tempo a perder com respostas à desesperança da estagnação dos tempos. Ela sabe que é errado, mas antes chegar em casa com os sentimentos violados do que o corpo. Ela comemora sempre que chega em casa.

Outro dia, quando discordou de um grupo de homens, percebeu que qualquer mulher que, de alguma forma, domine um grupo, nunca irá dominar o grupo de homens de sua classe. Sem pretensão vertical, ela só queria o igual. Sem emancipação desigual, só vislumbrou, por instantes, estar no mesmo degrau. E então pensou em sobreposição, em enquadramento e em física. Metaforizou as variáveis de uma sociedade como interdependentes, realocando as causas nos efeitos e os efeitos nas causas. Lógica recursiva e hologramática. Percepção dialógica sem excluir. “Um mero ideal” - e acordou.

É tão óbvio que os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz. Um sistema, um comportamento, uma mania. Um olhar, um julgamento, uma opressão e uma reivindicação. Ela reivindicava em cada pequeno ato, pois sempre precisou comprovar a validade das palavras no meio em que foi criada. Exausta, mas sedenta. Já entendeu que toda a pequena parte de uma organização contém o seu todo - é como uma célula que é formada pela totalidade da informação genética de um organismo global. A reprodução dos preconceitos interseccionados é assim. E então concluiu: talvez a solução seja uma doença autoimune.

Já frágil pela decadência da própria capacidade de solucionar suas retóricas, saiu para tomar uma cerveja. Felizmente, ia refletindo, a liberdade para um encontro de uma mulher consigo mesma já tem feito parte da deliberação coletiva sobre existir. Aceitas de modo avulso. Não. Vistas de forma avulsa. É quando transgredimos a lógica para aceitar as transgressões. Se refere ao momento em que defendemos o imparcial para não criar condições ao que não se enquadra nos padrões. O maior perigo da matemática existencial é justificar uma opressão com o discurso generalista de um universal que nunca vai existir.

 

THIANE ÁVILA.

 

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