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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Dessas mortes que não nos matam

24/6/2018 - São Roque - SP

- Se pensarmos pela perspectiva do tempo, a vida é morte o tempo inteiro.

Nas primeiras vezes em que fui desconcertada por ela, sentia-me constrangida. Estranha. Como um temporal que nos pega desprevenidos, Elis sempre parecia estar armada e prestes a não jogar o jogo de ninguém. Ela nunca joga, apesar de convencer quem quiser sobre estar jogando. Sua sutileza reside justamente no fato de sua espontaneidade reinar no plano da despretensão, regurgitando, na superficialidade da maioria, uma espécie de raiva pela complexidade que fazemos do óbvio. Elis tem como profissão traduzir. E isso não foi aprendido em nenhuma faculdade.

A vista de nosso quarto é tão confusa quanto suas ideias. Mistura cidade, mato, asfalto, carro e rio Guaíba. Elis não suportaria uma vista organizada fazendo cenário ao seu corpo quase despido na janela, olhando fixo e sem perspectiva para todas as informações cruas daquele plenário cheio de deliberações possíveis. Quando tenho tempo, me demoro a observando escrever, numa tarefa impossível de tentar imaginar o que está sendo prostituído em linhas. As semânticas inventadas e os novos signos explicados por ela. Honestamente, sempre achei as pessoas seres limitados e entediantes, com quem é possível que passemos algum tempo da vida, mas que, pela rotina, exaure. Murcha. Como rugas em rostos centenários, adentram tão profundamente em nossos espaços que corrompem qualquer chance de ser excitante novamente. Qualquer pretexto verdadeiramente animado para querer ficar ali para sempre. As uniões, a meu ver, sempre são interessantes até deixarem de ser. O improvável de Elis está exatamente no fato de não ser absolutamente nada, ao mesmo tempo em que dá conta de incorporar tudo.

- Nossa vida nada mais é do que um grande espetáculo. Representamos a todo o momento, contribuindo para os avessos das certezas e para as certezas dos avessos. Ambos problemáticos. Porém, como deixar de atuar não é uma possibilidade, sugiro que deixemos de lado a bobagem de construir as máscaras. As circunstâncias fazem isso. Eis o momento em que faz sentido falar de honestidade.

Esse é um dos escritos de Elis que talvez esteja no meu top 3. Quando nos conhecemos, duvidei que ela tivesse saído há pouco tempo de um relacionamento. Nossas histórias tão próximas e tão distantes. Ferida por sabe-se lá quem, Elis carregava nos olhos o peso de precisar partir. Na mesa do seu bar preferido da boemia da capital gaúcha, cansou de esquecer poemas escritos a goles de cerveja. Eles continuam lá. Feliz ou infelizmente, descobri que o dono do bar, conhecido dela, passou a guardar os pedaços de guardanapo esquecidos no balcão sempre que ia pagar a conta. 

- Alguns, no auge da bebedeira, foram descuidados a ponto de constarem nomes. Não posso correr o risco de ser descoberta. Tenho uma reputação a zelar.

E ria, com os olhos úmidos, ao terminar de falar sobre as histórias que seus amigos e seus garçons de confiança conheciam de cor. Nesse pub das sextas-feiras, Elis pede sua cerveja amarga e mantém a tradição de escrever. Agora, finge que esquece seus contos - exceto quando ficam bons demais. Nesses casos, os joga na primeira lixeira ao sair para fumar entre um chopp e outro. Então volta, recomposta, senta-se com sua companhia preferida no balcão, marcando com a calça rasgada o banco que fica à sua espera para brindar mais uma história.

- Sentada ao balcão, penso que construímos para sempres exatamente pelo motivo ao qual todos estamos fadados: o fim. Aí eu peço mais uma cerveja, escrevo sobre a última coisa que ele fala e esqueço o bilhete ao retirar o cartão da máquina.

Elis sempre foi um tornado em meio à monotonia da vida que eu achava ser interessante e agitada. Pronta para alçar voo a qualquer momento, ela entrou na minha vida escorrendo pelos dedos desde o início. Elis não é conquistada, mas constantemente conquistável. Suas linhas são um subterfúgio quase intransponível entre o real e o inventado. Seu real é inventado. Funciona com todas as instâncias de sua vida, fazendo de cada sílaba criada no mais prosaico poema uma catarse em potencial. Essa tsunami que assusta os apaziguados, tão familiarizados às promessas, alastra de frustração qualquer tentativa de enquadramento. Não sou a melhor pessoa para falar de rebeldia, mas sei que, em algum nível, já não sou mais a mesma desde que a conheci. E entendo isso melhor depois de ter encontrado um dos seus bilhetes no bar...

- Assim como eu não lido bem com o depois, não sei me arrepender. Se as pessoas lidassem consigo mesmas de forma passageira, entendendo que a mudança pode ser que se dê de um segundo pro outro, seriam mais tolerantes com suas versões antigas. Eu, por exemplo, já tenho outra perspectiva de vida desde que o último segundo passou. E agora outra. Nem o amor que eu sinto é o mesmo.

 

THIANE ÁVILA.

 

 

 

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