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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Ontologia dos pretextos

27/8/2018 - São Roque - SP

- Nada do que eu escrevo é feliz, e isso não significa que sou alguém triste. Apenas não acho que minhas palavras, quando alegres, tenham o mesmo valor de quando traduzem dores. As pessoas gostam de saber que não sofrem sozinhas. A dor compartilhada é automaticamente amenizada. Às vezes não queremos a cura, mas sim a tradução que se aproxime mais do que sentimos. Escrever é mais ou menos isso. E, cá entre nós… ninguém tem dúvidas das coisas que trazem felicidade, mas muitos têm o péssimo costume de perder a noção da real importância das feridas que alimentam.

Quando eu era criança, brincava de esconder tapando apenas os olhos em cima do sofá. Mergulhava somente com o nariz na água e morria de ansiedade quando acabava sendo a bobinha nos jogos com bola. Quando o almoço ficava pronto, tinha a mania de cortar toda a carne antes, e o feijão nunca combinava com arroz. Antes de dormir, rezava as orações decoradas e pedia ao anjo da guarda que avisasse ao sol que ele precisava comparecer no dia seguinte. A entrada do meu quarto tinha uma barraca montada, e a senha de segurança era Lise - ironicamente, um anagrama de Elis.

O tempo passou e, ao contrário do que se possa imaginar, a vida confirmou a teoria dela. Nada deixou de ser, só se realocou. Esconder apenas os olhos com a sensação de proteger o corpo inteiro talvez seja equivalente a continuar apostando nos sentimentos e sensações com grande probabilidade de gerarem cicatrizes.

- Não olha muito fundo nos olhos das dores, pois elas são muito convincentes quando nos querem fazer parar.

Ela tem razão. E isso porque tudo o que é capaz de ser sentido está pensando. O esconde-esconde adulto é a habilidade de intercalar os dois sem silenciar nenhum. A queda é a sobreposição dos extremos, é a hora da ansiedade quando se perde a bola no jogo. Ninguém gosta desse papel; mas, sem ele, a brincadeira acaba. E então mais uma parte da infância se atualiza: quanto de energia a gente despende só para não terminar com a diversão do outro? O quanto deixamos o bem-estar condicionado à frente dos próprios prazeres.

Antes de dormir, planejo não pensar em ninguém para variar o dia. Com o tempo, os sinais do corpo se modificam, mas os pedidos continuam os mesmos. Colocados apenas em prateleiras diferentes, são como livros novos de fim previsível. Mudam-se as histórias, conjugando personagens consciente ou inconscientemente. A vida contada nas linhas torna-se um híbrido, confundindo protagonistas e suas adjacências. Aprendi com Elis a não chamar ninguém de coadjuvante. Adjacência soa menos cruel à medida que corresponde aos ecos do que é central. Os silenciamentos existem pela natureza coadjuvante. É como estudar a ontologia dos nossos próprios pretextos ou fazer o exercício de se aprofundar na realidade do outro, numa tentativa altruísta de se manter sóbria nas próprias definições.

Entender que as coisas mudam de lugar e que as experiências não precisam ser sentenças, mas manuais para entendimento de si próprio resolveria boa parte de nossos problemas.

E assim, depois de alguma insistência, o feijão com o arroz passou a agradar. Isso talvez porque, quando começamos a dividir qualquer coisa com alguém, acontece aquela combustão inevitável. Elis começou a comer doce entre as refeições também.

THIANE ÁVILA.

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