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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

A fotografia do sobre

23/9/2018 - São Roque - SP

Era domingo, e o relógio já marcava sete da noite. Eu anoitecia com o tempo apressado, contando o dia em ritmo de alvorada. O entardecer se despedia com o hálito abafado do verão que chegava, trazendo à noite qualquer coisa ressonante com saudade. Naquele dia, quando acordei, esperei a chuva como quem espera o amor em tempos espinhosos. Já era o momento de alvorecer os passos do chão, sentenciando os jogos a meros devaneios, iguais àqueles das crianças que são proibidas de terminar a brincadeira sem ter resolvido as discórdias que sempre se afloram em meio aos ânimos estonteantes de um dia ao ar livre e fora das telas.

A primavera já havia feito seus cumprimentos. Lembrei-me das rosas por nascer e do quanto gostaria de fotografar o intervalo entre a sua inexistência e seu desabrochar. Foi então que, naquele instante, precisei inventar soluções imediatas ao meu problema, que há muito se via fadado à marginalidade das coisas que nunca ficam prontas. Em desalinho com minhas expectativas, a chuva não veio, o que me permitiu sair pelas ruas do bairro a fotografar os intangíveis.

Na primeira esquina, cruzei com uma senhora que estampava a passagem do tempo por meio do balanço ininterrupto dos cabelos grisalhos. Fotografei o ininterrupto dos seus cabelos. Mais adiante, grudada na barra da saia de quem, deduzi, seria sua mãe, uma criança, aos prantos, questionava a morte do pássaro na calçada, expressando todo o seu lamento pela cerimônia fúnebre que os outros companheiros pássaros faziam ao redor daquele que já não podia mais regozijar da existência. Fotografei a circunstância de não mais existir, que estava exposta no azul brilhante e molhado dos olhos da criança.

Do lado da banca de revistas fechada, um mendigo pregava, com pregos enferrujados, um cartaz feito por ele mesmo cujo conteúdo demarcava o perímetro de sua cama embaixo da marquise. Interessada pela ferrugem dos pregos, olhei para os seus pertences espalhados pelo chão e arrisquei reconstruir sua história pelo som do martelo improvisado com dois pedaços de madeira pregados. Imagino, por suposição, que aquele homem conhecia, com propriedade, o futuro do que falta. Fotografei a ausência que estava impregnada na ferrugem dos pregos que buscavam sustentar a privatização dos direitos inexistentes.

Antes de voltar para casa, percebi a construção recente de um ninho na árvore colada na sinaleira. Atentos ao verde do sinal, os passarinhos atravessavam a avenida para buscar recursos nas árvores vizinhas. Sem serem consultadas, as árvores das redondezas viam-se esvaziadas dos galhos mais imponentes, que eram levados pelos pássaros que, nitidamente, demonstravam-se urbanos e com conhecimentos específicos de engenharia das aves. Resolvi, então, pensar no vento que impulsionava o voo dos pássaros como um balizador das permissões. Fotografei as asas do vento que transpassava, enquanto, sem perceber, era fotografada pelas lentes invisíveis do tempo que passava por mim.

 

THIANE ÁVILA.

 

 

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