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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

Desterritorialização pelo excesso de territorialidade

11/6/2020 - São Roque - SP

Tenho pensado muito sobre os extremos que nos rodeiam atualmente. As guerras que se criam para que os próprios criadores vençam. Os inimigos inventados para que os laços se fortaleçam pela desunião que nasce das segregações. Palavras vazias pelo excesso dos discursos. Significados corrompidos pela demasia dos sentidos violentados por uma manipulação agressiva dos canais que atuam como pontes entre as pessoas e o mundo.

Sinto, nesse momento, que estamos sofrendo um intenso processo de desterritorialização pelo excesso de territorialidade. Quero dizer que, com as portas de nossas casas cerradas, temos vivido os acontecimentos do planeta inteiro em cima da mesma poltrona todos os dias. Olhando para as mesmas paredes, viajamos para os lugares onde os absurdos acontecem, num paradoxo enlouquecedor sobre habitar a mesma realidade, mas partindo, ilusoriamente, de um outro território. Isso fala sobre privilégios. Isso fala sobre a potência comunicacional e seus impactos. 

Dessa rotina desenfreada de estudos sobre o que nos atinge em meios diversos, estamos observando sob um prisma inédito. Incubadoras de decodificação, hoje, se situam nas esferas privadas de toda a gente, mas que estão, como nunca antes, vulneráveis aos ares de uma rua que, quem pode e tem consciência, há muito tempo não frequenta. Meus olhos se confundem com as paisagens que se repetem a cada manhã, ao passo que se sentem acariciados pela oportunidade de todos os recursos dentro do que é, e hoje descobrimos definitivamente, essencial à nossa vida. 

Vemos os noticiários deitados no sofá não está presente em todas as residências. Criamos expectativas sobre conquistas e acontecimentos que podem envolver diferentes continentes, mas que não exigem um único movimento de nossos corpos para outros lugar que não àquele que nos dá acesso a um computador. Revisamos nossos estudos, aqueles que nos ajudam a compreender o mundo, sem sair das páginas que sempre consultamos dentro das bibliotecas. Foi preciso ressignificar os espaços de aprendizagem e os momentos de reflexão. 

Toda uma rotina deslocada para o ambiente que, a rigor, nos servia como remanso e mecanismos de abstração do trabalho que não entrava conosco pela porta. A vida, didaticamente fragmentada, parecia mais simples de ser entendida a partir dos seus locais ideais. E, assim, como consequência direta, nossos papéis também passeavam e assumiam suas representações a partir das salas em que nossos corpos estavam. O escritório, a academia, o restaurante, o bar. Tudo isso, agora, se concentra na mesma sala. No mesmo quarto. Na mesma cozinha.

O café do intervalo é feito no mesmo local de todas as outras refeições. Os colegas de trabalho frequentam nossas casas como nunca antes. Viramos íntimos nas trocas de nossos lugares particulares. Penso ser inevitável que nossas reações se travistam de outras características nesse momento, pois é na intimidade de nossos lares que conformamos a esperada tranquilidade de levar ao mundo quem somos. O mundo, agora, possui o desenho de nossas paredes. Leva consigo os quadros de nossa sala e tem como decoração nossas fotos distribuídas por porta-retratos espalhados pelos cômodos.

Sinto, como nunca antes, a indigestão desses relatos sobrevoando minha realidade que é exceção em um país como o Brasil. Sinto minha desterritorialização se debatendo em muros ensanguentados de territorialidades diariamente bombardeadas. De corpos que não assistem ao noticiário de cima dos seus sofás, mas que são o conteúdo das notícias. Sinto o amargor dos relatos doídos de quem está na linha de frente de nossas guerras, estancando o sangue de milhares de pessoas que não escolheram ocupar os lugares impostos às suas vidas.

 

THIANE ÁVILA.

 

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