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Ângela Schiezari Garcia

Autor: Ângela Schiezari Garcia

As escolhas de vida: Espanha ou Brasil?

15/6/2012 - São Roque - SP

Barcelona, uma das cidades mais prósperas e belas da Europa, situada próxima ao Mediterrâneo,  foi destacando-se ao longo do tempo devido à formação de indústrias metalúrgicas, têxteis e químicas, além de centros comerciais, intelectuais e turísticos.                

Desenvolveu-se em sua plenitude, com a construção do primeiro porto da Espanha e numerosas construções dos séculos XIII a XV, no bairro gótico. Em fase de grande progresso, foi o berço de  famosos artistas, como também de outros personagens. Minha família paterna teve sua origem exatamente numa dessas ruas, embelezadas por árvores, arte e elegância.

Terra de povo patriota, marcado por um governante cruel e preconceituoso, vive até os tempos modernos os reflexos do sangue derramado desde a época do General Francisco Franco, em busca de uma liberdade ilusória, com destruição de famílias. Os refugiados da guerra se estabeleceram em outras partes do mundo, inclusive no Brasil, país solidário que acolheu povos, ajudou no resgate dessas pessoas e conheceu as histórias ocultas dos compatriotas catalães.

Rosita, ou Ruse Garcia Fernandez e Otávio, ou Juan Acosta Codobar, se conheceram em 1950, no Clot, um dos bairros de Barcelona, no baile de matinê promovido pelo colégio em que ambos estudavam. Rosita ao passar com seu irmão mais novo ouviu as músicas e curiosa, subiu até o pátio da escola. Ao vê-la passar, Juan ficou admirado com o jeito inusitado da garota e apostou com o amigo Quim, que a seduziria. O jovem “caçador”, Juan (como se autodenominava) convidou-a para dançar, enquanto Jaime se distraia com gibis e esperava a irmã.

Otávio ficara encantado com a enorme escultura física e tentava agarrá-la, durante a dança de rosto quase colado, mas ela resistia. Conseguiu descobrir o endereço onde ela vivia e por coincidência era próximo à sua casa. 

Começaram a namorar em pouco tempo, a sair com os amigos e todos apreciavam tomar vermute acompanhado de azeitonas recheadas, sentados num bar. Em outras ocasiões, passavam na doceria e compravam braço de gitano (doce do tipo de rocambole, recheado com nata, coberto com gema queimada, ou feito de trufa de chocolate) para os pais. Os principais programas estavam sempre ligados à dança e ao cinema, finalizados por aperitivos ou jantares típicos catalães.

Juan tentava distrair Jaime, dando-lhe tremossos ou amendoim, mas ele não percebia o real motivo pelo qual era sempre tão agradado pelo provável futuro cunhado. No fundo queria agradá-lo para conseguir ter mais momentos a sós, com Ruse, sem a sua interferência constante.

A facilidade de irem repetidas vezes ao Cinema Meridiana, na Calle Clot, se deve ao fato de que Emílio e esposa Maria Rosa, lá trabalhavam e conseguiam os ingressos gratuitos. Naquela época de inúmeras dificuldades, esse fato garantia o lazer da família.

A alegria do casal durou pouco, pois Rosita, após sete meses de namoro veio para o Brasil com a família e ambos prometeram fidelidade. Ele ficou enclausurado por três semanas, até que sua professora Pepita terminou com o namorado e convidou-o para dançar.

Otávio enviava cartas para o Brasil toda semana, mas não deixava de flertar com as morenas. Por vezes tomava alguns tabefes quando ousava avançar o sinal com suas mãos bobas. Era um homem de temperamento impulsivo, de sangue caliente e não gostava de desperdiçar as oportunidades que apareciam com relação às mulheres.

Enquanto isso no Brasil...

Ruse flertava com os brasileiros e acabou conhecendo muitos jovens pretendentes. Todos os finais de semana se reuniam na casa de amigos, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, e ao som de mambos, passo doble e boogie-woogie, tocados em uma vitrola passavam horas dançando, com intervalos para o piquenique, com coca-cola e sanduiches.

Em 1951, a família Garcia Fernandez retornava para Espanha, na  casa da avó Dolores, por mais onze meses, enquanto Emílio permanecia no Brasil com o objetivo de buscar  estabilização financeira. Ele conseguira  promoção no trabalho da indústria têxtil Calfat.

Em Barcelona, Ruse voltou a se encontrar com Juan todos os dias, até que retonara ao Brasil, após alguns meses, com a melhora da situação financeira de Emílio e a compra da casa própria perto da empresa, no centro de Santo Amaro.

Carmelo, pai de Otávio, ficara feliz ao conhecer Rosita, garota diferente de todas as outras que já havia conhecido. Sempre que podia a presenteava com doces ou frutas cristalizadas. Maria, a mãe de Otávio também aprovara a moça, porém não lhe agradava a história do filho, que programava a saída do país.

Otávio com receio de perdê-la para qualquer um daqueles pretendentes que havia conhecido nos meses anteriores, pedira para que Maria Rosa, a futura sogra, cuidasse dela, até que conseguisse economizar algum dinheiro para a passagem de navio.

Ruse trabalhara de balconista e Maria de tecelã, mesmo nunca tendo visto um tear. A necessidade as obrigava ao aprendizado rápido de novos talentos.

Em janeiro de 1954, Otávio veio da Espanha decidido a resolver a situação amorosa com Ruse, após ter juntado dinheiro durante um ano e meio, trabalhando como escriturário. Ao chegar ao Brasil, Ruse, Madalena e Aurora, duas senhoras refugiadas da Espanha e amigas da família, foram buscá-lo de ônibus no porto de Santos.

David, casado com Aurora ofereceu a Juan uma proposta para trabalhar como vendedor de produtos de beleza e com tino comercial, ele não só aceitou como foi se promovendo, até finalmente obter certa estabilização financeira.

Juan e Ruse casaram-se em 23 de junho de 1956, na Igreja de Nossa Senhora de Aparecida, em Moema. Nesta ocasião, moravam em Santo André, devido ao grande número de clientes que possuíam na região. Ruse colocara um balcão na própria casa e vendia produtos de beleza para ajudar o marido. Após três meses ficara grávida concomitantemente à mãe Maria, que estava no segundo mês de gravidez.

Após o nascimento do primeiro filho, Carlos, Otávio sofreu um acidente de lambreta, que o obrigara  a permanecer treze dias no Hospital das Clínicas, com graves fraturas nas pernas e com risco de perder um dos pés.

Assim, venderam a lojinha de produtos de beleza e passaram a morar na casa de Emílio. Otávio exigia cuidados especiais e Rosita o substituía nos serviços, sendo presenteada com o carro de seu pai para ajudá-la nas entregas dos produtos nos salões e nas casas das freguesas, que moravam distantes umas das outras.

Enquanto ela vendia, ele permanecia engessado, recuperando-se lentamente, trocando a muleta pelo andador e depois pela bengala, até voltar a dar os primeiros passos.

Juntamente com os patrícios espanhóis, formavam uma pequena colônia nos arredores do bairro onde moravam. Rosita montou o salão de beleza e recebeu o primo Alberto, de Barcelona. Ele trabalhou com ela por mais de oito anos, como cabeleireiro. Ela o auxiliava nos procedimentos de limpeza de pele, maquiagem, escova nos cabelos, exceto nos cortes.

Otávio, após onze meses de recuperação, voltou a vender os produtos com  David que o ajudou mais de uma vez. Eles tiveram a ideia de fabricar calcinhas plásticas e de tecidos, protetores higiênicos e bobbies, aqueles rolos para cabelo, confeccionados com tela de plástico, de diversos tamanhos. Montaram uma pequena oficina no fundo da casa e além de confeccionarem os produtos variados para a mulherada do bairro, também os comercializavam.

Após um ano de ideias e trabalho árduo, David desenvolveu um depilador e o patenteou como Depilador Aurora - o nome de sua esposa. Na fase de testes até a fórmula ideal, muitas pernas peludas passaram pelos testes do produto, as de Jaime até hoje permanecem sem os pelos. E foi assim que Otávio conseguiu a representação dos atacadistas da Química Delfino Ltda.

Em 1971, Otávio e Rose abriram sua loja de armarinhos auxiliados por yaya Maria, mãe de Rose, fase de maior prosperidade da família. Passaram por diversos desafios e nem os assaltos à loja os fizeram desistir de seus sonhos.

Eles tiveram dois filhos Carlos e Victor, o segundo em 1965. Sempre que possível viajavam para a Espanha com o objetivo de visitar os parentes e matar a saudade da terra natal.

Hoje com três netos, Rafael, Felipe e Laura, um filho morando no Brasil e outro na Espanha, se preparam para a trajetória final. Sentem-se divididos entre a vida de “brasileiros”, fase das melhores lembranças de suas vidas e a vida de “espanhóis”, no berço da pátria amada, que os abrigou em seu nascimento com a garra dos heróis, que sobreviveram às guerras civis e aos conflitos sociais.

Entregam o destino a Deus e aguardam pacientemente o sinal de qual atitude mais adequada deve ser tomada, entre ficar no Brasil ou regressar para a Espanha.

Histórias de união, lutas, conversas à mesa, regadas ao carajillo (o café com conhaque típico dos trabalhadores de fábricas para aquecer o corpo no inverno) e tantas lembranças de um tempo que não volta mais...

 

 

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