ColunistasCOLUNISTAS

Flaviana Souza

Autor: Flaviana Souza

A globalização, as crianças e a mudança da referência de protagonistas

13/11/2014 - São Roque - SP

 

Dentro de um contexto de globalização onde a hipervelocidade e o excesso de informação são distribuídos de modo massivo, torna-se quase impossível manter-se inerte e fiel aos seus princípios e ideais. Recebem-se informações com as quais não se imagina ter contato um dia e vêem-se obrigados a se posicionaram a respeito. Entre o analisar e o posicionar, o imediatismo exigido faz com que não se possa refletir com cautela rompendo, de maneira brusca, características da identidade do indivíduo.

Este cenário é pintado pelo sociólogo Zigmunt Bauman como “modernidade líquida”. Uma sociedade não menos moderna que a sociedade do século XX, porém, mais compulsiva, obsessiva e insaciável no anseio de desmantelar, cortar, defasar e reduzir em nome da competitividade e produtividade. É uma sociedade que é capaz de alterar e ser alterada pela cultura, rompendo os laços com sua identidade original com a finalidade de atingir o reconhecimento por meio de uma busca de felicidade baseada no poder de consumir o que o mercado induz.  (BAUMAN, 2001)

Ao inserir um público infanto-juvenil nesse ambiente, desenvolve-se a análise apresentada a seguir.

Que a globalização afeta de maneira positiva e negativa todos os indivíduos do planeta, já se sabe. Porém, são inúmeras as maneiras possíveis de se afetar e muitos são também os perfis a serem afetados. Para este projeto, foi escolhido trabalhar a transformação das referências de protagonistas dentro do público infantil nos últimos quinze anos.

Até o final do século XX, quando se buscava um livro, filme ou desenho animado deparava-se com uma princesa de cabelos impecáveis, doce voz, olhos encantadores e sorriso fácil. Do outro lado tinha-se o herói, sempre inteligente, imune a erros, com corpo escultural e senso de humor. Eram estereótipos da perfeição e por muito tempo foram utilizados como referência por crianças de quase todo o mundo (excluímos desse grupo crianças de países com cujas culturas optam por censurar o acesso a esses elementos como muitos países árabes). Não é necessária uma bibliografia para afirmar que Barbie e Batman, por exemplo, são grandes influenciadores de sua geração, e permanecem ainda hoje, porém, em menor intensidade.

Atualmente, por meio da globalização, ou do globalitarismo autoritário de Milton Santos (SANTOS, 2001) - depende do ponto de vista do leitor -, o mundo infanto-juvenil foi invadido por uma onda “vampirísta” que se inicia em 2005 com a distribuição dos best Sellers sobre vampiros e lobisomens de Stephenie Meyer, a saga Crepúsculo, para mais de 50 países. Apesar de o público-alvo ser adolescente, o respingo nas crianças aparece menos de dez anos depois com o lançamento de desenhos como Monster High (Escola de Monstros, em tradução livre) e Time Adventure (Hora da Aventura, em tradução livre). Fica então comprovado o novo favoritismo infantil por aqueles que eram antes os antagonistas das histórias, esquecendo-se das princesas perfumadas e dos heróis fortões.

Segundo Bauman, “nossa era não permite que as rotinas, os cotidianos e as tradições perpetuem”. O sociólogo também afirma que o moderno de hoje não é mais moderno que o moderno de ontem. (BAUMAN 2001) Portanto, a mudança da referência dos protagonistas das histórias infantis não está sendo modificada pela primeira vez.

Walt Disney, no início do século passado, apropriou-se dos contos de Andersen e dos Irmãos Grim e modificou-os com o objetivo de atrair o público infantil, e moldar as histórias ao contexto de politicamente correto em que viviam, com um novo conto de fadas[1]. É nesse momento que a vovozinha da Chapeuzinho Vermelho deixa de ser devorada como um banquete e ter seu sangue bebido como vinho pelo lobo e pela própria Chapeuzinho, que depois do jantar faz striptease para o lobo, e passa a ser salva por um corajoso lenhador que retira a vovó viva da barriga do lobo. Deixava-se para trás as histórias criadas em sua maioria na Europa da Idade Média, para o entretenimento de adultos, inspiradas em psicodramas da infância, recheadas de adultério, incesto, canibalismo e mortes hediondas tendo a fome e a mortalidade infantil como inspiração (WARNER apud BELGA, 2010).

No contexto atual o imperfeito é permitido. Com a difusão, mais uma vez por meio da globalização, de literaturas como “Sombra e o mal nos contos de fadas” de Marie-Louise von Franz, onde o lado obscuro que todo indivíduo possui mas muitas vezes desconhece é apresentado e exposto, a sociedade compreende e aceita que uma ruptura dessa identidade de utopia moral é necessária. Nesse ponto enquadra-se mais uma fez o conceito de modernidade líquida sugerido por Bauman.

O fator transformação de identidade não é o único que influencia na modificação do protagonista das histórias infantis. A economia gerada pela cultura de massa é forte atenuante desse rompimento com o(a) mocinho(a) e aproximação do vilão(a). Essa tese pode ser comprovada se voltar à saga Crepúsculo e entender que ela seguiu uma linha de sagas que deu certo com Senhor dos Anéis e Harry Potter. O mercado de literatura infanto-juvenil comprou a ideia das sagas, logo, as editoras encontraram um novo caminho que levaria seus livros para o mundo inteiro e apostou nele. Seguindo o sucesso que os vampiros e lobisomens fizeram com os adolescentes, a Mattel, fabricante de brinquedos, desenvolveu um produto semelhante para o público infantil e lançou a linha de bonecas Monster High cujas personagens são vampiras, múmias, lobisomens, etc que logo ganhou as telas de TVs. O sucesso de Monster High por sua vez, engatilhou mais uma empreitada da Mattel, a criação da nova linha de bonecas e desenho animado Ever After High (Sempre Depois da escola, em tradução livre).

Ever After High surge mais uma vez para romper a identidade recém-criada pelo público infantil, reafirmando a hipervelocidade da cultura líquida de Bauman, ao desmembrar novamente os contos de fadas, dessa vez, colocando como personagens centrais os possíveis filhos das protagonistas dos contos de fadas politicamente corretos. 

A globalização influencia intensamente o cenário infantil e colabora para a constante modificação dos personagens centrais das histórias, filmes, desenhos e brincadeiras. Há claro, a interferência de fatores históricos que não podem ser negados, mas as características da globalização (velocidade, desapego, consumismo...) favorecem muito esse processo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DIGITAIS

 

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2001.

FRANZ, M-L Von. Sombra e o Mal nos Contos de Fada. Paulus. 2002.

SANTOS, M. Por uma globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro. Record, 2001.

WARNER apud BELGA. O lado obscuro dos contos de fadas. 2010. Disponível em   http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/origem-sangrenta-contos-fadas-567124.shtml, acesso em 25/09/2014 às 14h09min.

WIKIPÉDIA. Contos de Fadas. 2014. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Fada acesso em 25/09/2014 às 15h02min.

 

[1] Fada vem do latim fatum: fatalidade destino, fardo - WIKIPEDIA, 2014

 

 

Perdeu os outros artigos? Estão todos aí embaixo:

 

A arte como campo privilegiado de enfrentamento do trágico e o caso Jim Carrey (I needed color)

O homossexualismo na Arte e a obra de Steve Walker

A figura de Cristo e a face Aqueropita

O papel da escola no hábito do cidadão de frequentar e desfrutar a Arte

Museu Casa Guilherme de Almeida: Um relato da visita

Tecnologia dentro dos museus: aliada ou inimiga
A Arte que a escola não ensina e o analfabetismo cultural 

A globalização, as crianças e a mudança da referência de protagonistas

A cultura só pode ser compreendida a partir da história

Cultura como direito básico gerando desenvolvimento

Por que usar museus?

Patrimônio, Desenvolvimento, Globalização e Futuro: Case Polo Turístico do Circuito das Frutas

 

 

 

Compartilhe no Whatsapp