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Rogério de Souza

Autor: Rogério de Souza

A reforma do ensino médio e os divergentes projetos empresariais

7/12/2016 - São Roque - SP

FOTO: Mariana Leal/MEC – Maria Inês Fini, Mendonça Filho e Maria Helena Guimarães

 

Compreender o Brasil não é tarefa fácil. Talvez isso ocorra porque o brasileiro - como sugere o cientista político Luiz Werneck Viana - é fruto do cruzamento entre “filhote de jacaré e cobra d’água”. Essa mistura improvável aproxima grupos divergentes na acomodação de diferentes interesses. No entanto, junto ao processo de acondicionamento de díspares inclinações, o coro desafina, a voz embarga e as muitas nuances se sobressaem. Nessas ocasiões, brechas se abrem e projetos supostamente bem estruturados são colocados de pernas para o ar, verificando-se inúmeros contrassensos. Essa dialética morena pode ser verificada mais uma vez na tramitação da reforma do ensino médio no Congresso Nacional.

Ancorando-se nos sucessivos índices negativos do desempenho dos estudantes brasileiros, em 22 de setembro, o Ministério da Educação (MEC) apresentou uma polêmica proposta de reforma do ensino médio através de instrumento impositivo, a Medida Provisória (MP) nº 746.

A MP 746 inicialmente apresentada (transformada no Projeto de Lei nº 34 após aprovação do relatório da Comissão Mista - responsável pela reforma) fundamenta-se essencialmente na flexibilização do currículo e no protagonismo juvenil. Para isso, estabelece que o país não ofereça apenas uma única trilha formativa aos secundaristas, mas permita que os mesmos escolham entre cinco itinerários formativos – linguagens, matemática, ciências humanas, ciências da natureza e formação técnica e profissional. Ademais, alegando que existem muitos componentes curriculares no ensino médio (13 disciplinas), determina a não obrigatoriedade de Artes, Educação Física, Espanhol, Filosofia e Sociologia na escola média. Dessa forma, a indispensabilidade recai somente para as disciplinas de Português, Matemática e Inglês, devendo ser desenvolvidas durante os três anos desta esfera de ensino.

Discutir a não obrigatoriedade de disciplinas expõe um grave problema da MP 746: colocar o carro na frente dos bois. As razões são muitas e o foco específico: elencar como problema central do ensino médio a quantidade de disciplinas. Nesse sentido, sem deixar claro qual será o “cardápio” oferecido para a escolha (e protagonismo) discente, a reforma pressupõe a importância de determinadas disciplinas em detrimento de outras. Isso se dá por conta da inversão absurda do documento: os componentes curriculares do Ensino Médio só serão discutidos e deliberados - sobre que conteúdos deverão ser trabalhados na formação geral - na Base Nacional Curricular Comum, a BNCC, que ainda será elaborada e tem previsão de conclusão para 2017. Logo, “não discute para definir, mas define para poder discutir”.

Além disso, perdem-se no caminho (e em praticamente toda a proposta de reforma): a importância científica e formativa das diferentes disciplinas para o jovem, o acúmulo de conhecimento produzido e a qualidade e valorização da formação “básica”, papel do ensino médio brasileiro, conquistado após anos de lutas e debates para a consolidação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, são colocados em segundo plano.

A MP também estabelece que a formação geral ocorra nos três primeiros semestres (um ano e meio) do ensino médio e que a partir do quarto semestre o aluno escolherá um dos itinerários formativos. As escolas deverão oferecer, no mínimo, dois itinerários, definidos pelos sistemas de ensino (Estados).

Para suprir a carência de docentes em diferentes áreas, a MP acena com a possibilidade de contratação de profissional do magistério por notório saber para, principalmente, a área de formação técnica e profissional. Também se estabelece que os estudantes que ingressarem no ensino superior poderão solicitar o aproveitamento de conteúdos vistos na escola média.

A medida cria ainda a “Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral”, com a determinação de carga horária de 1.400 horas para as instituições que praticarem essa modalidade de ensino e aprendizagem. O interessante e curioso de tal perspectiva é pensar que a proposta orienta-se pela defesa do modelo de ensino em tempo integral a partir de uma seleção restrita de opções formativas e formação geral.

Flerta-se com a possibilidade de instituições privadas solicitarem recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Diante desses pressupostos e da falta de clareza sobre a participação de instituições privadas - especialmente as chamadas OS’s (Organizações Sociais), na promoção dos itinerários formativos -, estudiosos apontam que a reforma atenderia aos desejos de grupos econômicos em detrimento dos 10 milhões de jovens com idade entre 15 e 17 anos.

Portanto, é uma reforma que se fundamenta na flexibilidade do currículo e no protagonismo juvenil, porém, adota-se a prática autoritária de implementar modificações na educação através de Medida Provisória, não possibilitando que estudantes, educadores, gestores, pesquisadores, pais e a comunidade em geral participem enquanto sujeitos da concepção da proposta. Igualmente, em nenhum momento a MP aponta de onde sairão os recursos para adaptar as escolas no sentido de oferecer os cinco itinerários formativos e mesmo o ensino em tempo integral. No contexto da PEC do Teto dos Gastos (55/241), dificilmente essas propostas serão retiradas do papel ou se adotadas, estarão relegadas à precariedade.

A MP 746 retoma o ideário neoliberal que serviu como base para as questionáveis reformas educacionais desenvolvidas na década de 90 capitaneadas pelo ex-ministro Paulo Renato Souza. A indicação de Maria Helena Guimarães de Castro para a Secretaria Executiva do MEC e de Maria Inês Fini para a presidência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) reforçam a volta do projeto e seus antigos personagens. Dessa forma, discussões travadas ao longo de anos foram deixadas em segundo plano: o Plano Nacional de Educação (PNE), as atuais Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio e o próprio Projeto de Lei 6.840 de 2013 (Reformulação do Ensino Médio).

Contudo, conforme preconizava o velho Jobim, “o Brasil não é um país para principiantes”.  Após 12 audiências públicas e 568 emendas apresentadas pelos parlamentares, a Comissão Mista aprovou, no último dia 30 de novembro, Parecer assinado pelo senador Pedro Chaves (PSC-MS) que apimenta e modifica, para o bem e para o mal, a proposta inicial.

Contradizendo a proposta inicial do MEC, o documento reestabelece a obrigatoriedade no ensino médio das disciplinas de Artes e Educação Física. Os itinerários formativos indicados pela MP têm os seus títulos alterados: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias e ciências da natureza suas tecnologias. A área de ciências humanas denota uma curiosidade: não leva os termos “e suas tecnologias” e agora figura como ciências humanas e sociais aplicadas. A nova nomenclatura pode abrir a possibilidade para o debate acerca do retorno das disciplinas de Filosofia e Sociologia. Todavia, este último ponto não fica claro e será definido somente após a aprovação da BNCC, uma vez que o documento destaca a revogação da lei 11.684/2008 que tornava obrigatórias as duas disciplinas em todas as séries da escola média.

Cada escola deverá oferecer, no mínimo, dois itinerários para possibilitar uma “relativa” escolha aos secundaristas. No entanto, o discurso do protagonismo estudantil cai por terra quando a própria relatoria assume - diante dos pedidos de parlamentares para que as escolas ofereçam todos os itinerários formativos -, aquilo que já se apregoava: quem escolhe é o sistema de ensino e não os discentes: “Precisamos reconhecer que nem todos os sistemas de ensino têm condições de infraestrutura e de pessoal para oferecer todos os itinerários. Além disso, há sistemas tão dispersos geograficamente que o simples fato de oferecerem todos os itinerários não garantirá que os alunos tenham acesso ao seu itinerário preferido. Também não julgamos apropriado listar componentes curriculares obrigatórios, que serão listados no âmbito da BNCC”. Sobre esse ponto, deve-se lembrar que o Brasil possui mais de 3.500 municípios com apenas uma escola de nível médio (IBGE).

Ao contrário da determinação da MP 746 apresentada em 22/09/2016, a formação geral deverá ocorrer, segundo o Parecer, nos três anos do ensino médio e compreenderá 60% da carga horária. A formação diversificada (itinerários formativos) abarcará os 40% restantes. Ainda, esta iniciará no primeiro ano do curso ao invés do quarto semestre. Essa modificação atenua a desfiguração da formação secundarista e dificulta a divisão do ensino médio em dois ciclos: formação geral (propedêutica) e formação diversificada. Todavia, priva-se os estudantes secundaristas, especialmente aqueles das escolas públicas, de uma formação geral e universal profunda, impossibilitando que os mesmos ingressem nos concorridos cursos de instituições de ensino superior como a USP, UNICAMP, UNESP, UERJ, etc. Dessa forma, projeta-se uma explosão da cultura dos cursos pré-vestibulares privados para atender os “despossuídos” de certos itinerários formativos.   

O tempo do estudante na escola também mudou no Parecer. No ensino médio em tempo integral o aluno ficará 1.400 horas/ano conforme indicado na MP. Já no chamado ensino médio regular, o jovem ficará na escola 1.000 horas/ano ao invés das 800 horas/ano atuais. Desse modo, a escola secundarista em tempo integral somará 4.200 horas e a regular 3.000 horas. “A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária.” Portanto, amparando-se na ideia de que a permanência na escola melhora o desempenho educacional, deputados e senadores aumentam a carga horária do ensino médio regular sem indicar, mais uma vez, a origem do recurso para arcar com gastos adicionais (contração de educadores, inspetores, merenda, etc.).

De maneira confusa, o Parecer também sugere que os sistemas de ensino poderão criar itinerários formativos integrados, compostos por módulos, constituídos a partir do aproveitamento de aspectos dos outros itinerários: “Os sistemas de ensino poderão compor itinerário formativo integrado, composto por módulos, considerando os incisos I a V do caput”. A proposta de criação de módulos aproxima-se da metodologia do PBL (Problem Based Learning) e/ou das Unidades Curriculares apresentadas em uma das audiências públicas a partir da experiência do Instituto Federal do Paraná, campus Jacarezinho. Por conseguinte, poderemos assistir ao aparecimento de uma grande quantidade de trilhas formativas, especialmente nas escolas mais estruturadas.

A recorrência ao profissional de notório saber persiste. Define-se apenas que este limitar-se-á a atuação na formação técnica e profissional. A insistência na contração de profissionais de educação pelo notório saber não objetiva incorporar ao magistério profissionais competentes que não receberam formação pedagógica, mas suprir a carência de professores e diminuir o custo de manutenção da educação. Consequentemente, a precarização do trabalho docente e a transformação do magistério em “bico” reinarão.

Outra diferença marcante entre os dois textos é sobre o financiamento do ensino médio. O Parecer indica que as escolas que optarem pela extensão do ensino para o tempo integral receberão, durante 10 anos (na MP eram 4 anos), subsídio para custear essa modalidade. No entanto, não estabelece valor mínimo por aluno e diz que será “respeitada a disponibilidade orçamentária definida em ato do Ministro da Educação.”

O Parecer ressalta que o FUNDEB custeará, também, a área de formação técnica e profissional. Ou seja, inclui este itinerário formativo no rateio da verba da Educação básica - Ensino Infantil, Ensino Fundamental (I e II) e Ensino Médio – e acende um sinal de alerta para a possível falta de dinheiro nas séries iniciais.

Ainda no campo do financiamento, o Parecer acentua que as verbas do FNDE e FUNDEB serão utilizadas para financiar as escolas públicas. No entanto, abre-se a possibilidade de atuação da Educação a Distância (EAD) no Ensino Médio, especialmente para aqueles itinerários que os sistemas de ensino e escolas não possuírem condições de oferecer. “O Ministério da Educação poderá celebrar convênios com entidades representativas do setor de radiodifusão, que visem ao cumprimento do disposto no caput, para a divulgação gratuita dos programas e ações educacionais do Ministério da Educação, bem como à definição da forma de distribuição dos programas relativos à educação básica, profissional, tecnológica e superior e a outras matérias de interesse da educação.”

A adoção da EAD não é uma prática nova, atende a lobby de grupos econômicos e apresenta-se como justificativa viável diante da deliberada diminuição da verba para o ensino no contexto da PEC 55/241. Dessa forma, os embaixadores da mercantilização da educação resolvem dois problemas: a redução do dinheiro para a educação e a transferência de parte do mesmo para as instituições privadas que ofertam EAD.

Sobre este último ponto, fica a impressão que a MP 746 atendia aos anseios dos grupos que rodeiam os governos paulista e pernambucano. Já o Parecer responde aos grupos econômicos do Brasil-Central que se notabilizaram em oferecer cursos de EAD de qualidade questionável.

Conclui-se, dessa forma, que as supostas divergências mostradas a partir dos dois documentos (a MP e o Parecer) revelam, entre outras coisas, os grupos em disputas para determinar a educação brasileira. Percebe-se, entretanto, que a espinha dorsal das propostas é mesma: beneficiar o setor privado em detrimento de uma educação pública com qualidade. As possíveis brechas abertas no Parecer podem acalmar os ânimos e encantar alguns educandos. Mas a história nos mostra que os donos do Brasil (ou do poder) parafraseando Raymundo Faoro, podem até ceder os anéis, mas não entregam os dedos.

 

Agnes Cruz de Souza, professora do Ensino Médio (Fundação Instituto de Educação de Barueri – FIEB) e doutoranda em Ciências Sociais (UNESP).

Rogério de Souza Silva, professor do IFSP.

 

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