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Thiane Ávila

Autor: Thiane Ávila

A vontade do que ainda não foi inventado

9/7/2018 - São Roque - SP

- É que, melhor do que começar do zero, é poder começar da metade para o fim. E o motivo é muito simples, porque, quando recomeçamos, geralmente queremos fazer diferente. Porém, sem repertório sobre o igual, como discernir a diferença? A metade do tempo resolve esse problema.

Numa tarde dessas, ela estava escrevendo sobre dedos e linhas. Com água na boca, era como se sexualizasse os próprios versos, expressando a sua ânsia pelo que parece nunca ser suficiente. Ao vê-la completamente vulnerável pelos prazeres da própria escrita, propus a simulação de aquele ser o seu último poema. Depois dele, o capítulo da história do mundo que conta a descoberta da poesia seria, automaticamente, deletado e ninguém mais sequer saberia o que a palavra poesia significa. Imediatamente, ela parou de escrever.

- A maior poesia que eu poderia deixar no mundo é uma página completamente em branco. Mais do que ser conhecida apenas por se dar a conhecer, me importa o estímulo da invenção. Assim, mesmo em um mundo sem poesia, eu deixaria a matéria-prima para reinventá-la: a chance de começar a escrever.

Sempre senti muito medo da vulnerabilidade encapuzada de força que exala dela. Num mundo habituado a descaracterizar o diferente, é como se a fragilidade de qualquer artista, desses como Elis, estivesse condenada à morte. Como se a sensibilidade, atualmente, fosse colocada em tubos de ensaio para que as próximas gerações a estudem. A cientifização do tempo congelou a tranquilidade do desconhecido, criando a tal vontade do que ainda não foi inventado. Com frustração. Com medo do fim. 

- Sempre que inicio um texto, fico ansiosa por terminá-lo. Minha empolgação tangencia uma vontade imaculada sobre o que ainda não conheço. É como esperar o choro de uma emoção que não sabemos se vem. A consequência antes do estímulo. É a antecipação da antecipação: vontade da consequência de um resultado de algo que ainda nem aconteceu. Por isso que eu escrevo.

Quando comecei a conviver com Elis, passei a perceber o real tamanho do meu coração. O fato de ser tão pequeno a ponto de, nele, não caber nem a metade das minhas dores. Quando a ansiedade vem, sinto transbordar pelas frestas mal cuidadas de suas paredes, invadindo cada brecha do corpo. Escapa pelos olhos, pelos poros. Coração pequeno assim não dá conta de guardar a quantidade de sentimento que quer dar conta. E é só por isso que me exponho, que me transcrevo, que me redimensiono. A arte sempre será a forma menos escandalosa de fazer uma bagunça irreversível dentro do peito.

As histórias, invadindo o pouco espaço do coração, são perigosas. Altamente capazes de deixar tudo submerso, perdido, confuso. Não há mais espaço para nada. Sem saber compartilhar as vozes do peito, desaprendemos a linguagem comum dos afetos, a única capaz de impedir o enferrujamento das engrenagens da subjetividade. Pensar de forma próxima do outro. Penso ser tão tristes as coisas consideradas sem ênfase. A intensidade, para mim, nunca está descolada da ânsia por fazer e inventar. A energia sexual que move nossos instintos é a mesma que faz com que meus olhos, ao olhá-la, sejam capazes de serem transcritos em cifras específicas de um poema que eu nunca conseguirei escrever. Saindo pelas brechas daqueles que observam o circo todo, muitas vezes o ego fala mais alto e, por isso, as insignificâncias que dão o aroma das memórias tornam-se secundárias.

Nesse processo eterno e constante das abundâncias do amor e seus parentes, sigo buscando, nas sinestesias do perfume dela, os motivos para não deixar com que o trabalho necessário para comportar tudo o que não cabe no coração deixe de fazer sentido. Na pior das hipóteses, submersa ou não nos próprios excessos, expandirei, à força, a capacidade do corpo de aguentar o tranco. No fundo, tudo se resume à celebre lição: quando se percebe que vai cair, é melhor se atirar logo.

 

THIANE ÁVILA.

 

 

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